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History: as mudanças nos estádios e na cultura da arquibancada inglesa


Em fevereiro de 1992, após romperem com a Football League First Division, os clubes ingleses fundaram a FA Premier League com o objetivo de aumentar as receitas que vinham do direito de transmissões das partidas e negociarem seus próprios contratos de patrocínios. A entrada de mais dinheiro nos cofres dos times ajudou a impulsionar uma modificação, não só no futebol jogado, mas praticamente em todos os estádios e também na cultura da arquibancada na Inglaterra. A sociedade clamava por uma intervenção na violência dos hooligans após tragédia de Hillsborough em 1989 e exigia mudanças imediatas.

Enquanto Hillsborough foi o ponto de virada para que os governantes percebessem que algo precisava ser feito, foi preciso que outra tragédia acontecesse quatro anos antes. No que pode ser considerado quase que como um prelúdio, a violência e mortes proporcionada pelos hooligans da torcida do Liverpool em Heysel também se deve muito ao despreparo e desconhecimento (ou seria negligência?) das autoridades e organizadores. As brigas dentro dos estádios eram muito territoriais, expulsar a torcida rival do estádio trazia reputação e aumentava a fama das firms (torcidas organizadas). Separadas por uma pequena barreira e poucos policiais, os hooligans ingleses viram uma ótima oportunidade para atacar os torcedores da Juventus, pouco antes do início da partida. Em menor número, os italianos começaram a correr em direção a um muro de concreto. Alguns torcedores conseguiram pular, mas muitos ficaram prensados contra a parede. Além dos 39 mortos, cerca de 600 pessoas sofreram ferimentos. Isso resultou em uma punição aos times ingleses. Cinco anos fora de competições internacionais e seis para o Liverpool, que estava envolvido no vandalismo que ocorreu em Bruxelas.

Hooligans foram os principais responsáveis pelas mortes em Heysel.
A vergonha e lamentação pelo ocorrido não foram o suficiente para que atitudes fossem tomadas e os jogos em estádios precários continuaram a ser realizados. Hillsborough, assim como Heysel, não possuía preparo para receber uma partida de futebol. Oito anos antes do acontecimento de 1989, o estádio já havia sido palco de incidente parecido na semifinal da FA Cup entre Tottenham e Wolverhampton. Houve tumulto e cerca de quarenta pessoas feridas, mas como ainda não haviam grades que dividiam parte da arquibancada (elas foram colocadas anos depois), os portões laterais foram abertos e isso aliviou o aperto da multidão. A FA só voltou a utilizar o estádio em semifinais da Copa da Inglaterra em 1987, sempre superlotado e torcedores sendo tratados com desrespeito.

Devido a superlotação, pessoas foram prensadas
contras as grandes em Hillsborough.
Apesar de estar em um número maior no dia, os torcedores do Liverpool receberam um espaço menor no estádio. Em cerca de dez minutos, muitas pessoas começaram a se aglomerar perto da entrada com catracas e quem estava sendo impedido de entrar no estádio não conseguia deixar a área por conta da multidão. O início da partida entre os Reds e o Nottingham Forrest não foi adiado devido aos torcedores que já haviam entrado.

Repetindo o que foi feito em 1981, um dos portões fora aberto e estima-se que mais cinco mil pessoas estavam tentando passar as catracas. Mas a estratégia não funcionaria dessa vez. Devido as reformas no estádio, não havia mais o mesmo espaço de antes. A polícia, que estava preparada apenas para conter o hooliganismo e não a superlotação, abriu outro portão e mais torcedores se concentraram nas divisões centrais. Sem uma sinalização adequada, a maioria se concentrou no meio e quem estava na frente foi pressionado contra as grades pelo peso de milhares de torcedores que estavam logo atrás. A polícia impediu que médicos e ambulâncias entrassem em campo para ajudar os feridos, pois temiam uma briga generalizada. Os próprios torcedores tentavam ajudar de alguma maneira. Alguns fazendo macas improvisadas, outros tentando erguer pessoas para a parte de cima. Das 96 vítimas, apenas quatorze conseguiram chegar ao hospital. Evidências foram alteradas para culpar os torcedores do Liverpool e o tabloide The Sun chegou a publicar uma capa histórica acusando os hooligans de roubarem e urinarem nas vítimas além de atacarem os policiais. Somente quase 25 anos depois que as autoridades reconheceram que provas foram alteradas e o que ocorreu em Sheffield não foi hooliganismo e, sim, despreparo, negligência e preconceito.

"The Old Shed End" em Stamford Bridge. Relatório pôs fim
a tradição de torcer em pé.
A maior tragédia da história do futebol britânico deu origem ao Relatório Taylor, publicado em janeiro de 1990. O inquérito, chefiado por Lorde Peter Taylor, fez 43 recomendações e 27 delas teriam que ser implementadas quase que imediatamente. Entre elas, a monitoração das arquibancadas, regularização de alambrados e grades, melhor preparação dos policiais e responsabilidade dos clubes donos dos estádios. O relatório colocou fim a tradição de torcer em pé. Todos com bilhete agora teriam um assento, a fim de evitar superlotação.

Até então, grande parte da classe média-alta via o futebol com desprezo, já que os maiores frequentadores dos estádios eram da classe operária. A ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, principal defensora da classe média, era uma das quais não hesitava em demonstrar o seu desdém. Com a criação de uma nova liga e as novas exigências nos estádios, um novo público começou a surgir no futebol inglês.

O policiamento ganhou apoio de câmeras de vídeo e qualquer tipo de baderna seria reprimida. Brigas e cantos preconceituosos não mais podiam ser tolerados. Muitos hooligans agora foram banidos pra sempre das arquibancadas. Essa transformação também atraiu diversos investidores, que passaram a ver que o futebol era um mercado gigante e com muitas fontes de lucro. O preço do ingresso também aumentou e uma nova onda de torcedores mais “calmos” começou a frequentar estádios muito mais seguros e confortáveis. O clima hostil que predominava nos anos 70 e 80 foi abolido de vez. Turistas e diversos imigrantes agora podem ir aos jogos sem serem vítimas de racismo ou qualquer outro tipo de violência.

Strentford End em Old Trafford, 1975.
Mas a elitização teve o seu preço. Ainda que gere uma boa receita e os estádios estejam sempre cheios, o afastamento de grande parte da classe operária e de pessoas mais pobres que costumavam ir aos jogos fez com a atmosfera dos estádios esfriassem. A essência do futebol foi deixada de lado. As palmas e gritos de apoio ao time em campo deram lugar a uma platéia de teatro, que apenas senta e assiste ao jogo como se estivesse sentado vendo TV no sofá de sua casa.

Entretanto, o hooliganismo dentro dos estádios foi controlado. Mas não extinto. As firms continuam se esbarrando pelas ruas e incidentes de vandalismo continuam a ocorrer, apesar das punições extremamente rigorosas. Franklin Foer, no livro “Como o Futebol Explica o Mundo”, conversa com Alan Garrison, um dos percursores do hooliganismo e torcedor do Chelsea. Garrison acredita que todas essas transformações acabaram por domesticar a violência no estádio, “estragando o prazer da arte pura e espontaneidade das brigas”. Agora elas acontecem com data e local marcado. As confusões foram extraídas do futebol, mas seguem vivas pelos bairros ingleses. Os hooligans viraram tema de fascínio e de muito estudo, tendo sua questão existencial muito bem definida por Alan: “Se a violência do futebol não ocorre no estádio, será mesmo que é violência do futebol?”

Abaixo, uma lista de times que reformaram ou construíram novos estádios devido ao Relatório Taylor, além é claro, da demolição do antigo estádio de Wembley.

1993: Millwall deixa o The Den após 83 anos e se realoca no novo estádio com capacidade para 20 mil pessoas sentadas.

1994: O The Kop, parte do estádio onde torcedores do Liverpool assistiam aos jogos em pé, é demolido. Assim como a Holte End do Villa Park.



1995: Middlesbrough se muda para o Riverside Stadium, que tem capacidade para quase 35 mil pessoas.

1997: Sunderland se muda para o Stadium of Light (42 mil pessoas), após 99 anos jogando no Roker Park.

1998: Reading deixa Elm Park após 102 anos para se realocar no Madesjki Stadium (25 mil pessoas).

1999: Wigan se muda para o JJB Stadium (25 mil pessoas), deixando o Springfield Park onde jogava desde 1932.

2000: Em jogo válido pela eliminatórias da Copa de 2002, a Inglaterra perdeu por 1 a 0 para a Alemanha. Esse foi o último jogo no antigo Wembley, que fechou suas portas após 77 anos para construção de um novo estádio. O gol histórico foi marcado por Dietmar Hamann.

2001: Southampton deixa o The Dell após 103 anos e se muda para o St. Mary's Stadium, que tem o dobro da capacidade de seu antigo estádio - 32 mil pessoas.

2002: Leicester City deixa o Filbert Street após 111 anos e se muda para o Walkers Stadium (32 mil pessoas).

2006: Thienry Henry marca três gols no último jogo do Arsenal em Highbury antes dos Gunners se realocarem no Emirates Stadium.

Highbury antes de ser reformado e depois demolido.
2009: Cardiff City deixa o Ninian Park após um século e se muda para o Cardiff City Stadium, com capacidade para 27 mil pessoas.

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